
O fato reabriu a discussão sobre a violência no trânsito, a mobilidade urbana, a relação de respeito entre ciclistas e motoristas de automóveis, além de suscitar a conscientização ecológica do uso da bicicleta como meio de transporte.
Olavo Ludwig Jr., integrante do Massa Crítica, movimento responsável pela organização da manifestação, há quatro anos utiliza a bicicleta como principal meio de transporte e, diariamente, percorre cerca de 20 quilômetros. Ele não participou do último encontro, mas disse que a atitude do motorista representa “a insanidade social que estamos vivendo. As pessoas se sentem como se estivessem de volta à selva, onde vale a lei do mais forte”. Em entrevista à IHU On-Line, por telefone, ele fala da falta de conscientização da população e menciona que, no Brasil, o automóvel ainda é sinônimo de status social. “Quanto mais dinheiro a pessoa ganha, maior é o carro. (...) Infelizmente, no imaginário coletivo ainda está presente a ideia de que quem anda de bicicleta é pobre, operário e não tem dinheiro para comprar um carro e, por isso, teria menos valor de quem está de carro.”
Olavo Ludwig Jr. é formado em Física pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul (UFRGS) e trabalha no controle de qualidade da água, no Departamento de Água e Esgoto (Demae).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a origem do movimento Massa Crítica? Que reflexões vocês propõem para a sociedade a partir do encontro de ciclistas?
Olavo Ludwig Jr.– O movimento surgiu em São Francisco, nos EUA, em 1992, quando oito ciclistas se reuniram e foram pedalar pelas ruas da cidade. A cada mês, mais pessoas começaram a aderir ao movimento e hoje há adeptos no mundo todo, inclusive em Budapeste, onde existe o maior número de ciclistas: 50 mil.
A ideia do Massa Crítica é celebrar o uso da bicicleta. Normalmente as pessoas já a utilizam como meio de transporte e, em um dia especifico do mês, se reúnem para mostrar à sociedade que existe vida além do automóvel. Dizem que o carro é uma necessidade, mas queremos mostrar que essa necessidade é superestimada e existem alternativas a esse meio de transporte.
IHU On-Line – Como e com que objetivo surgiu a Associação Ciclística da Zona Sul (ACZS)?
Paulo Alves – A ACZS surgiu em 1994, na zona sul de Porto Alegre, nos bairros Tristeza e Ipanema, tendo o objetivo principal de preservar os morros da zona sul. Com o passar dos anos, começamos a incentivar o uso da bike como transporte. Hoje estamos mais do que nunca empenhados com a educação de trânsito voltada para ciclistas e motoristas.
IHU On-Line – Você estava presente no dia do atropelamento de vários ciclistas, em Porto Alegre? Pode nos contar como tudo aconteceu?
Paulo Alves – Sim. Vi quando o carro tentou passar pela primeira vez, onde foi impedido pela massa. Logo após, teve discussão, mas não houve violência contra o veículo. Duas quadras para frente, ele acelerou, foi quando ouvi um barulho diferente que me chamou a atenção. Não tive reação e o automóvel passou a menos de um metro da minha pessoa.
IHU On-Line – Qual sua sensação diante do atropelamento?
Paulo Alves – Fiquei em estado de choque, vendo todas aquelas pessoas no chão, feridas. Fico
desapontado, pois a vida foi colocada em último lugar.
IHU On-Line – Você não esteve presente na última manifestação do Massa Crítica, em Porto Alegre, mas o que a atitude do motorista representa e significa?
Olavo Ludwig Jr. – Essa atitude representa a insanidade social que estamos vivendo. As pessoas se sentem como se estivessem de volta à selva, onde vale a lei do mais forte. A vida cotidiana agitada está gerando muito estresse e o mais forte pode fazer valer a sua vontade.
IHU On-Line – Por que a cultura do automóvel é tão forte no Brasil comparando com outros países do mundo, inclusive a China, que tem uma superpopulação?
Olavo Ludwig Jr. – Na China, as pessoas utilizavam mais a bicicleta por falta de opção do que por consciência. Com a melhora da economia, os chineses estão deixando as bicicletas de lado e aderindo ao automóvel. Já na Europa, o transporte por bicicleta representa mais de 50% do deslocamento diário.
No Brasil, existe um incentivo ao uso do automóvel: a propaganda e a indústria automotiva são muito fortes. O próprio presidente declarou que gostaria de ver cada brasileiro com um carro e o governo, inclusive, reduziu o IPI para facilitar a compra de carros, recentemente.
Em Seul, na Coreia do Sul, o congestionamento no trânsito era enorme até que um engenheiro resolveu propor a destruição da estrada e a revitalização do rio que passava embaixo. Essa seria uma iniciativa interessante para se fazer no Arroio Dilúvio, em Porto Alegre, com uma infraestrutura dirigida às pessoas e não ao automóvel.
Na minha avaliação, a iniciativa de Seul mostrou que o trânsito se comporta como um gás e não como um líquido, fazendo uma analogia física. Quanto mais vias se abrem para o líquido, mais ele flui. No trânsito, ocorre o contrário: quanto mais vias se disponibilizam para o transporte de automóveis, mais aumenta o tráfego. Além do mais, ao construir novas estradas, túneis e aumentar as vias das estradas, os governos estão incentivando o uso do automóvel. Se diminuíssem o espaço para carros, diminuiria o trânsito. Foi isso que aconteceu em Seul: as pessoas passaram a utilizar mais transporte público e bicicleta para se deslocarem.
IHU On-Line – Como vê a relação carro/ciclista no trânsito das cidades?
Olavo Ludwig Jr. – A relação é tensa porque o ciclista, para poder andar na rua, precisa ter muita atenção, pois o motorista de automóvel é despreparado. É muito fácil conseguir habilitação para dirigir e vejo muitos motoristas dirigindo como se estivessem sentados no sofá da sala assistindo televisão.
Ciclistas e motoristas devem ter consciência no trânsito. Eles têm de entender que a bicicleta também é um meio de transporte. O básico que o motorista precisa saber é que ele deve diminuir a velocidade ao passar por uma bicicleta e manter uma distância de um metro e meio: isso é garantido por lei. A maioria dos motoristas respeita os ciclistas, mas cerca de 5% não respeitam, o que representa milhares de carros.
Paulo Alves – O gaúcho é grosso por natureza, mas não podemos ser ignorantes e egoístas. Entretanto, é assim que muitos se comportam no trânsito; não há respeito mútuo, pois o ciclista também tem que fazer a sua parte e vice-versa.
IHU On-Line – Hoje o cotidiano é mais agitado se comparado com outros anos. Como conciliar essa vida acelerada, marcada pela mobilidade tecnológica com menos carros?
Olavo Ludwig Jr. – Vejo nessa relação uma contradição. A tecnologia avança e a nossa vida fica ainda mais agitada. Deveria ser ao contrário: a tecnologia deveria nos proporcionar tempo para realizar atividades que realmente são importantes na vida, em vez de trabalhar exaustivamente e assumir ainda mais compromissos.
De qualquer modo, o carro não é a solução para o deslocamento. Se cada pessoa tiver um carro, o trânsito ficará ainda mais lento. A solução desse problema é o investimento em transporte público eficiente.
IHU On-Line – Em que consistiria uma política pública adequada para o setor de transportes ecológicos?
Paulo Alves – Porto Alegre já tem um plano diretor cicloviário, o qual apresenta uma série de ações para incentivar os transportes não poluentes, como instalação de bicicletários, educação de trânsito específica e campanhas de saúde.
IHU On-Line – Qual a viabilidade de utilizar a bicicleta como meio de transporte, considerando a atual engenharia das cidades?
Paulo Alves – A bicicleta é um veículo, e como tal tem o direito de compartilhar a pista com os veículos automotores. Ocorre que as vias estão cada vez mais estreitas, pois onde antes era uma avenida com duas faixas, hoje é uma avenida com três faixas. Essas mudanças não deixam espaço para outro modal.
IHU On-Line – É possível pensar uma cidade sem carros?
Paulo Alves – Acredito que o carro é uma ferramenta de grande utilidade, mas deve ser usado com propósitos sociais – dar carona seria uma delas – ou até mesmo deixar o carro em casa um ou mais dias da semana. Só assim podemos ter uma cidade com menos carros.
IHU On-Line – Qual é a adesão do público gaúcho ao movimento Massa Crítica? Como vê a conscientização da população em relação à ecologia e sustentabilidade?
Olavo Ludwig Jr. – As pessoas estão apoiando o movimento e ele está crescendo. No início dos anos 2000, vários ciclistas participavam do bicicletada, um encontro de pessoas que gostavam de passear de bicicleta. Em 2008, aderimos ao movimento Massa Crítica e passamos a nos reunir na última sexta-feira do mês, no final do dia. Primeiramente, participavam oito integrantes e, a partir de 2010, novas pessoas começaram a participar. Nos últimos encontros, reunimos cerca de 120, 150 pessoas. A cada dia aumenta mais essa consciência ecológica. O Massa Crítica é um movimento de paz, no qual as pessoas querem reivindicar segurança e por isso andam em grupo.
A maioria da população utiliza o transporte público ou a bicicleta, por isso, cabe ao governo incentivar o uso desses transportes alternativos. Quando tiver um transporte público adequado, de qualidade, as pessoas se darão conta de que é melhor se locomover com transporte público e que é mais agradável andar de bicicleta.
Paulo Alves – Em pesquisa realizada por nossa associação, foi relatado que 85% das pessoas que possuem carro também possuem ou já tiveram bicicleta. A bicicleta aproxima as pessoas, não agride. Acho que Porto Alegre deve ser um exemplo em cidadania, pois muita gente acredita que a bicicleta é o transporte do futuro.
IHU On-Line – Você utiliza a bicicleta inclusive para trabalhar?
Olavo Ludwig Jr. – Desde 2007 utilizo a bicicleta como principal meio de transporte. Moro no bairro IAPI e trabalho no Menino Deus. Percorro dez quilômetros para ir e dez para voltar. Inclusive quando chove, vou de bicicleta. Todas as crianças adoram tomar banho de chuva; nós adultos é que ficamos nojentos com o passar do tempo.
Tenho sorte de trabalhar em uma instituição que oferece vestiário, onde posso tomar um banho e trocar de roupa antes de trabalhar. Com deslocamentos menores, as pessoas não transpiram tanto e nem precisariam trocar de roupa para trabalhar. Penso que, quando as pessoas têm vontade de utilizar um meio de transporte ecológico como a bicicleta, elas não procuram justificativas para continuar se deslocando de carro.
No imaginário coletivo ainda está presente a ideia de que quem anda de bicicleta é pobre, operário e não tem dinheiro para comprar um carro. Muitos também acham que, porque as pessoas não têm dinheiro para comprar um automóvel, ela não tem o mesmo valor do que aquelas que têm dinheiro para comprar um carro. Infelizmente, o automóvel ainda representa status social. Quanto mais dinheiro a pessoa ganha, maior é o carro. As pessoas se utilizam do automóvel para mostrar que são bem sucedidas. Felizmente essa ideia está mudando e pessoas ricas também estão utilizando a bicicleta por opção. Aos poucos vamos mudar essa ideia de quem é rico usa carro e quem é pobre usa bicicleta.
Projetos de Incentivo ao Uso da Bicicleta aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário